

A Cultura Visual da Medicina
em Portugal
1. Um Programa de Pesquisa: A Fundamentação Teórico-metodológica
Sendo uma cultura com os seus produtos – o imenso repositório de imagens em suporte impresso, fotográfico, radiográfico, videográfico e cinematográfico, digital, as esculturas em cera, os manequins anatómicos e as máscaras mortuárias, bem como os próprios espécimes cadavéricos preservados, esqueléticos, diafanizados, mumificados, formolizados, criogenizados, e assim objecto e material museológico, de comunicação científica e pedagógica, de obra de arte, de produto laboratorial, ou até de exotismo de cabinet de curiosités, que tudo isso o foi também – a cultura visual da medicina não é, em rigor, abordável, na ignorância dos dispositivos de poder/saber que trouxeram à existência as imagens que a compõem, que o mesmo é dizer: dos mundos de sentido que as tornaram necessárias, produtivas, funcionais e inteligíveis.
A nossa abordagem de uma história das imagens médicas e antropométricas, que configuram a cultura visual da medicina em Portugal, é feita na perspectiva das ciências da comunicação e, para além de múltiplos e diversificados contributos das ciências sociais e humanas, convoca e intersecta a história e filosofia da(s) ciência(s) e da técnica, a história e a teoria da(s) arte(s), a cultura visual e a história e a filosofia da medicina e as humanidades médicas, concentrando-se particularmente no cruzamento entre a arte, a ciência e a técnica. Os seus pressupostos fundadores encontram-se em Erwin Panofsky, Marshall McLuhan, Paul Virilio e Michel Foucault, cujas teses, é necessário dizê-lo de entrada, se não se referem directamente ao que muito depois da reflexão de qualquer deles se veio a entender por cultura visual da medicina, são indispensáveis para se discernir a génese, o âmbito e a história desta.
2. Erwin Panofsky: o Devir-ciência da Arte Anatómica
A abordagem da cultura visual da medicina (Cartwright, 1995; Cascais, 2004) obriga a que comecemos por a situar no âmbito mais vasto das relações entre arte e ciência e, de maneira ainda mais particular nesse contexto, no duplo processo do devir ciência da arte e do devir arte da ciência. Do ponto de vista de um devir-ciência da arte (anatómica), é em Panofsky (1989) que encontramos a tese seminal segundo a qual, no intervalo temporal que vai de Leone Battista Alberti e Leonardo da Vinci a Albrecht Dürer, a teoria das proporções humanas foi deixada pelos artistas e teóricos da arte aos cientistas. Este cânone da representação anatómica do corpo humano manteve-se vigente sem alterações de fundo pelo menos até, e inclusive, à definição da medicina experimental moderna, por Claude Bernard, cujo papel na transformação do olhar médico foi tão inovadoramente estudado por Michel Foucault. Segundo Panofsky, a arte do Renascimento testemunhou uma revolução na representação do corpo humano que se iniciou com Leone Battista Alberti e Leonardo da Vinci e que se consumou com Albrecht Dürer. Diz-nos Panofsky que Alberti e Leonardo são, respectivamente, o profeta e o inaugurador do novo estilo e os únicos a terem dado passos decisivos para o desenvolvimento de uma teoria das proporções para além dos padrões medievais:
«Ambos estão de acordo na sua determinação de elevar a teoria das proporções ao nível de uma ciência empírica. (…) Aventuraram-se a encarar a própria natureza e aproximaram-se do corpo humano vivo com compasso e régua. (…) A sua intenção era descobrir o ideal dentro de uma tentativa de definir o normal e, ao invés de determinar as dimensões apenas aproximadamente e só na medida em que eram visíveis no plano, buscaram aproximar-se do ideal de uma antropometria puramente científica pela determinação dessas dimensões com grande exactidão e respeito cuidadoso pela estrutura natural do corpo, não apenas em altura como também em largura e profundidade. (§) Alberti e Leonardo forneceram então uma prática artística que se tinha libertado das restrições medievais por uma teoria das proporções que ia mais longe do que oferecer ao artista um esquema planimétrico de desenho – uma teoria que, baseada na observação empírica, era capaz de definir a figura humana normal na sua articulação orgânica e numa completa tridimensionalidade» (Panofsky, 1989, p. 64).
No entanto, a condição que possibilita a emergência do corpo humano como objecto representacional privilegiado é também a mesma que permite a emergência da subjectividade que preside à forma moderna de representar o corpo. De facto, trata-se daquilo a que Foucault chamaria uma episteme: o corpo é produto desta nova subjectividade. Isto mesmo o confirma Panofsky:
«Estes dois desenvolvimentos lançam luz sobre aquilo que é talvez a diferença mais fundamental entre o Renascimento e todos os períodos artísticos precedentes. Temos visto repetidas vezes quais as três circunstâncias que poderiam levar o artista a estabelecer uma distinção entre as proporções “técnicas” e “objectivas”: a influência do movimento orgânico, a influência do escorço e a atenção à impressão visual do observador. Estes três factores de variação têm apenas uma coisa em comum: todos pressupõem o reconhecimento artístico da subjectividade. O movimento orgânico introduz no cálculo da composição artística a vontade subjectiva e as emoções subjectivas da coisa representada; o escorço, a experiência visual subjectiva do artista; e os ajustamentos “eurítmicos” que substituem o que é certo pelo que parece certo, a experiência visual subjectiva dum observador potencial. E é o Renascimento que, pela primeira vez, não apenas afirma mas formalmente legitima e racionaliza estas três formas de subjectividade» (Panofsky, 1989, p. 65).
Por outro lado, há que dizer que a revolução renascentista de modo algum cortou com o primado ocidental da mimesis que preside à representação artística desde a poética aristotélica, como justamente repara Gombrich (Gombrich, 2000, pp. 11-12). É por isso que Panofsky pode concluir que Leonardo, «[i]dentificando o belo com o natural, buscava averiguar não tanto a excelência estética quanto a unidade orgânica da forma humana» (Panofsky, 1989, p. 65). Simplesmente, é a ciência que faz agora a sua entrada em cena nas práticas artísticas, impondo-se a estas como cânone de representação rigorosa dos fenómenos naturais: é ao devir-ciência da arte que assistimos, a representação artística magistral do corpo humano reconverte-se numa autêntica especialidade científica. O rigor estético confrontar-se-á doravante com o rigor científico, do mesmo modo que toda a racionalidade passará a ver-se constrangida a replicar incessantemente aos desafios trazidos pela moderna ciência da natureza. A revolução iniciada com Alberti e Leonardo está consumada com Dürer, primeiro teórico alemão das proporções humanas, com quem, diz-nos ainda Panofsky, a transição da Idade Média para o Renascimento e, em certo sentido, para além dele, pode ser observada, como que em condições de laboratório (Panofsky, 2007). De resto, Dürer confirma a grande tradição ocidental que privilegia a mimesis: para ele, a arte encontra-se na natureza, há tão-só que a extrair de lá. Influenciado por Leonardo e Alberti, Dürer transferiu o seu interesse para uma ciência puramente antropométrica que ele acreditava ter um valor mais pedagógico do que prático. Em virtude da sua própria exactidão e complexidade, as suas investigações levaram-no progressivamente para além dos limites da utilidade artística, até acabarem por perder qualquer relação com a prática artística:
«Mas, embora os seus métodos não tenham servido, como esperava, a causa da arte, provaram ser inestimáveis para o desenvolvimento de novas ciências tais como a antropologia, criminologia e – surpreendentemente – biologia» (Panofsky, 1989, p. 68).
Isto mesmo o confirma Kemp:
«A maneira de Duerer caracterizar os temperamentos individuais nos seus escritos publicados acerca das proporções humanas exerceram um impacto duradouro, não apenas na fisiognomia, mas também nas ciências oitocentistas da frenologia, da craniologia e da eugenia» (Kemp, 2000, p. 14).
E Panofsky conclui com a tese crucial para situar a cultura visual da medicina no quadro mais vasto das relações entre a arte e a ciência modernas:
«Assim, nos tempos modernos, a teoria das proporções humanas, abandonadas pelos artistas e teóricos da arte, foi deixada para os cientistas, à excepção de cálculos fundamentalmente opostos ao desenvolvimento progressivo que tendeu para a subjectividade» (Panofsky, 1989, p. 69).
3. Marshall McLuhan: o Meio (Visual) é a Imagem (Médica)
Na cultura visual da medicina é possível destrinçar três grandes épocas, que se poderiam começar por distinguir em função dos diferentes suportes materiais das imagens médicas, mas apenas sob a condição de não esquecermos a tese seminal de Marshall McLuhan, que, ao afirmar que o meio é a mensagem –
«Numa cultura como a nossa, acostumada de há muito a apartar e dividir todas as coisas como um meio de controle, causa por vezes um certo choque ser lembrado que, para todos os efeitos práticos e operativos, o meio é a mensagem. Isto quer dizer tão-só que as consequências pessoais e sociais de qualquer médium – isto é, de qualquer extensão de nós próprios – resultam da nova escala que é introduzida por cada extensão de nós próprios, ou qualquer nova tecnologia» (McLuhan, 1994, p. 7).
– avisou que os conteúdos são determinados pelos suportes materiais das mensagens e que, consequentemente, as formas culturais se transformam em função das alterações nos modos de percepção por sua vez decorrentes de mudanças nos media (McLuhan, 1994; McLuhan & Zingrone, 1998). E acrescenta:
«…”o meio é a mensagem” porque é o medium que molda e controla a escala e a forma da associação e da acção humana. (…) Com efeito, é muito típico que o “conteúdo” de qualquer medium nos cega para o carácter do médium» (McLuhan, 1977, p. 9).
De resto, esta tese de McLuhan vem já na sequência, e de algum modo sintetiza programaticamente, o seu esquema de mudança cultural global, segundo o qual «[é] impossível construir uma teoria da mudança cultural sem conhecer as mudanças de relações sensoriais que resultam das diversas exteriorizações dos nossos sentidos» (McLuhan, 1977, p. 93). Como é sabido esta teoria da mudança cultural assenta na correlação da alteração dos suportes materiais da comunicação, com a recomposição da gestalt perceptiva do indivíduo e com a mudança cultural: «Quando a tecnologia prolonga um só dos nossos sentidos, a cultura sofre uma transposição cuja rapidez é proporcional à velocidade de assimilação da nova tecnologia» (McLuhan, 1977, p. 89). Nesta conformidade, dizer que a cultura visual da medicina se reparte pela representação anatómica renascentista, primeiro, pela radiografia, a fotografia e a cinematografia, em seguida, e finalmente pelas tecnologias digitais contemporâneas de imagiologia médica, obriga em primeiro lugar a articular cada um destes tipos de imagens médicas com os respectivos suportes tecnológicos – respectivamente: a imagem impressa em papel, os raios X e a película fotográfica e cinematográfica e finalmente o computador – e, em segundo lugar, a correlacionar as formas da percepção e os regimes de cognição, ou seja, a emergência dos objectos científicos e a construção das formas de subjectividade que lhes correspondem.
4. Paul Virilio: as Três Lógicas da Imagem Médica
De resto, a repartição que fizemos acima é, em parte, devedora, e não está muito distante, da definição, feita por Paul Virilio, de épocas de vigência de diferentes iconologias ou lógicas da imagem e que são outras tantas épocas de propagação da imagem:
«Com efeito, a era da lógica formal da imagem é a da pintura, da gravura, da arquitectura, que se encerra com o século xviii. (§) A era da lógica dialéctica é a da fotografia, da cinematografia, ou, se se preferir, a do fotograma, no século xix. A era da lógica paradoxal da imagem é a que principia com a invenção da videografia, da holografia e da infografia…» (Virilio, 1994, p. 133).
Na opinião de Virilio, conhecemos bastante bem a realidade da lógica formal da representação pictural tradicional e, em menor grau, a actualidade da lógica dialéctica que preside à representação foto-cinematográfica, mas só com muito pouco à-vontade é que estimamos as virtualidades da lógica paradoxal do videograma ou do holograma. Daí que o paradoxo lógico seja o da imagem em tempo real que domina a coisa representada, o do tempo que doravante a faz sobrelevar o espaço real. Deste modo, é a virtualidade que domina a realidade, subvertendo a própria noção de realidade; daí a crise – a todos os títulos pós-digital – das representações públicas tradicionais (gráficas, fotográfica, cinematográficas) em proveito de uma apresentação, de uma presença paradoxal, da telepresença do objecto ou do ser que supre a sua própria existência, aqui e agora. Outra coisa não é a alta definição ou a alta resolução, não tanto da imagem, como da própria realidade. Com a lógica paradoxal, é a realidade da presença em tempo real do objecto que é definitivamente resolvida, ao passo que na era da lógica dialéctica da imagem, que a precedeu, era unicamente a presença em tempo diferido, a presença do passado que impressionava de forma duradoura as placas ou as películas. A imagem paradoxal surpreende o objecto em tempo real e permite assim a tele-acção e o telecomando, como o anuncia, por exemplo a cirurgia dirigida à distância por um especialista que não se encontra na presença do paciente operado. Esta mudança no uso da imagiologia médica, que faz com que a imagem passe do âmbito da instrução da ação para o nível de terreno ou plano da própria intervenção técnica enquadra-se, para Virilio, num âmbito bem mais vasto, no qual o espaço público cede diante da imagem pública e, perante esse facto, é de esperar que a vigilância e a iluminação se desloquem, por sua vez, dos espaços públicos para os espaços privados, que assim vão perdendo a sua autonomia. Pode-se assim compreender até que ponto se torna cada vez mais objectiva e verídica a afirmação de Paul Klee, que dizia que, agora, são os objectos que me (nos) vêem, (Virilio, 1994, p. 125), após dois séculos em que o debate filosófico e científico se deslocou da questão da objectividade das imagens mentais para a questão da sua actualidade (Virilio, 1988, pp. 127-128).
Eis porque nos encontramos já a considerável distância daquela época inaugural que vai de um Théodore Géricault a um Alphonse Bertillon. Géricault servia-se dos cadáveres do hospital Beaujon, situado nas proximidades do seu atelier, assim como da autorização que lhe é dada, para assistir a agonias de moribundos internados e seguir todas as fases da dor, que depois retratava, juntamente com as expressões dos loucos, que servirão de material de demonstração para os estudantes de medicina e os assistentes médicos:
«”Transmutação da ciência em retratos eloquentes”, disse-se, ou antes desvio pelo artista do signo clínico em proveito da obra pintada que se torna num documentário, numa imagem carregada de informações, desvio daquela percepção de sangue frio tão particular que permite ao médico e ao cirurgião detectar o mal pelo simples uso dos sentidos e o recalcamento de toda a emoção devida ao efeito de terror, de repulsa ou de piedade» (Virilio, 1988, p. 86).
Se se pode dizer que ver sem ser visto é um dos adágios da não-comunicabilidade policial, o certo é que com Bertillon – o mesmo é dizer a técnica do bertillonage – muito antes do sociólogo ou do antropólogo, o olhar do investigador policial sobre a sociedade é eminentemente exterior a ela (Virilio, 1988, p. 94), sem por isso deixar de ser conduzida por um olhar prevenido, que o mesmo é dizer, enviesado pela própria intenção que o conduz. Ficou célebre a sua frase em que denuncia a enfermidade do olhar humano, segundo a qual só se vê aquilo para que se olha e só se olha para aquilo que se tem na cabeça. Deste modo se tornaria patente o papel desempenhado pela técnica da fotografia na mudança de um regime do olhar médico para outro:
«Empiricamente reconhecida como trágica, a impressão fotográfica é-o verdadeiramente quando se torna, no início do século [xx], no instrumento das três grandes instâncias da vida e da morte (justiça, exército, polícia) e se mostra capaz de revelar, desde a origem, o desenrolar de um destino. Deus ex machina que, para o criminoso, o soldado ou o doente, se tornará tão igualmente irremediável, não podendo esta conjunção do imediato e do fatal passar sem se agravar com o progresso das técnicas de representação» (Virilio, 1988, p. 97).
Com o tempo, assistir-se-á ao nascimento de um hiper-realismo da representação judiciária e policial, desde que se começou por pôr em dúvida o valor do relato da testemunha ocular e se chegar até a prescindir do seu corpo, visto que se possui, mais do que a sua imagem, a sua tele-presença em tempo real. A vigilância e a punição próprias do panóptico de Bentham, e descritas por Michel Foucault, a partir da sua preocupação com o efeito de terror, que é ao mesmo tempo não-dito e desejo totalitário de iluminação, teriam pois transposto um limiar que as afasta do modelo disciplinar e normalizador dos séculos passados para aquele que doravante conhecemos, e que, como afirma Deleuze (Deleuze, 1990, pp. 240-246) comentando Foucault, é o das nossas, actuais, sociedades de controle. Com esta transformação, o que aconteceu é que:
«A omnividência, a ambição totalitária do Ocidente europeu, pode (…) aparecer como a formação de uma imagem inteira pelo recalcamento do invisível e visto que tudo aquilo que aparece, aparece na luz e o visível não é senão o efeito de real da prontidão de uma emissão luminosa, dizemos que a formação de uma imagem total é tributária de uma iluminação que, pela velocidade das suas próprias leis, anularia progressivamente as que são originalmente dispensadas pelo universo – não apenas sobre as coisas, mas (…) nos corpos» (Virilio, 1988, p. 77).
5. Michel Foucault: As Transformações do Olhar Médico
A tese de Michel Foucault, desenvolvida em O nascimento da clínica – significativamente subintitulado «Uma arqueologia do olhar médico» (Foucault, 1980) – é que:
«A medicina moderna fixou sua própria data de nascimento em torno dos últimos anos do século xviii. Quando reflecte sobre si própria, identifica a origem de sua positividade com um retorno, além de toda teoria, à modéstia eficaz do percebido. De fato, esse presumido empirismo repousa não em uma redescoberta dos valores absolutos do visível, nem no resoluto abandono dos sistemas e suas quimeras, mas em uma reorganização do espaço manifesto e secreto que se abriu quando um olhar milenar se deteve no sofrimento dos homens. (…) no início do século xix, os médicos descreveram o que, durante séculos, permanecera abaixo do limiar do visível e do enunciável. Isto não significa que, depois de especular durante muito tempo, eles tenham recomeçado a perceber ou a escutar mais a razão do que a imaginação; mas que a relação entre o visível e o invisível, necessária a todo o saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que se encontrava aquém e além de seu domínio» (Foucault, 1980, p. x).
Com efeito, «[a] medicina como ciência clínica apareceu sob condições que definem, com a sua possibilidade histórica, o domínio de sua experiência e a estrutura de sua racionalidade» (Foucault, 1980, p. xiv). Neste sentido, Foucault esclarece que:
«O acesso do olhar médico ao interior do corpo doente não é a continuação de um movimento de aproximação que teria se desenvolvido, mais ou menos regularmente, a partir do dia em que o olhar, que começava a ser científico, do primeiro médico se dirigiu, de longe, ao corpo do primeiro paciente; é o resultado de uma reformulação ao nível do próprio saber e não ao nível dos conhecimentos acumulados, afinados, aprofundados, ajustados» (idem, p. 157).
Ao arrepio da narrativa mítica que enforma a percepção que a historiografia médica tem da emergência da medicina científica moderna, Foucault adverte que:
«Acima de todos estes esforços do pensamento clínico para definir seus métodos e suas normas científicas plana o grande mito de um puro Olhar, que seria pura Linguagem: olho que falaria. (…) Este olho que fala seria o servidor das coisas e mestre da verdade» (idem, p. 130).
Na verdade,
«[a] discreção do discurso clínico (proclamada pelos médicos: recusa da teoria, abandono dos sistemas, não-filosofia) remete às condições não verbais a partir de que ele pode falar: a estrutura comum que recorta e articula o que se vê e o que se diz» (idem, p. xviii).
Foucault denuncia a ilusão deliberada da historiografia médica clássica, que é também e por isso a sua narrativa legitimadora, à luz da qual teria sido o facto bruto da descoberta da anatomia patológica que teria permitido definir o novo espírito médico, fundá-lo e recobri-lo, assim como os métodos de análise, o exame clínico e inclusive a reorganização das escolas médicas e dos hospitais. Tanto teria ocorrido à custa da persecução heróica e clandestina das luzes da verdade científica contra a ameaça do obscurantismo circundante dos poderes religiosos instituídos. Objecta ele que essa reconstituição é historicamente falsa e funciona como justificação retrospectiva:
«foi preciso convocar uma história transfigurada, em que a abertura dos cadáveres, ao menos a título de exigência científica, precedia a observação, finalmente positiva, dos doentes; a necessidade de conhecer o morto já devia existir quando aparecia a preocupação de compreender o vivo» (Foucault, 1980, pp. 142-143).
Efectivamente, «[a] anatomia só pôde tornar-se patológica na medida em que o patológico anatomiza espontaneamente» (Foucault, 1980, p. 149).
A clínica determina o lugar de encontro do médico com o doente por três meios: a alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos numa observação, o esforço para definir uma forma estatutária de correlação entre o olhar e a linguagem e o ideal de uma descrição exaustiva e sem resíduo:
«Um olhar que escuta e um olhar que fala: a experiência clínica representa um momento de equilíbrio entre a palavra e o espectáculo. Equilíbrio precário, pois repousa sobre um formidável postulado: que todo o visível é enunciável e que é inteiramente visível, porque é integralmente enunciável. Mas a reversibilidade sem resíduo do visível no enunciável ficou na clínica mais como exigência e limite do que como princípio originário. A descritibilidade total é um horizonte presente e recuado; sonho de um pensamento, muito mais do que estrutura conceitual de base» (Foucault, 1980, p. 131).
De um modo que anuncia o rumo que o haveria de levar à formulação da arqueologia dos saberes, Foucault afirma:
«Esta estrutura em que se articulam o espaço, a linguagem e a morte – o que se chama em suma o método anátomo-clínico – constitui a condição histórica de uma medicina que se dá e que recebemos como positiva. (…) Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à experiência médica que a doença se pôde desprender da contranatureza e tomar corpo no corpo vivo dos indivíduos. (§) É, sem dúvida, decisivo para a nossa cultura que o primeiro discurso científico enunciado por ela sobre o indivíduo tenha tido que passar por este momento da morte. É que o homem ocidental só pôde se constituir a seus próprios olhos como objecto de ciência, só se colocou no interior de sua linguagem, e só se deu, nela e por ela, uma existência discursiva por referência à sua própria destruição (…) Pode-se compreender, a partir daí, a importância da medicina para a constituição das ciências do homem: importância que não é apenas metodológica, na medida em que ela diz respeito ao ser do homem como objecto de saber positivo» (Foucault, 1980, pp. 226-227).
Bastante mais tarde, Foucault retomará em Vigiar e punir (1984) o tema maior da visibilidade, erguendo sobre ela uma teoria do poder inteira. Um poder que, como bem sabemos depois dele, obriga pela omnipresença do olhar. E obriga positivamente, porquanto, muito mais que destruir, ocultar, impedir, negar, dissuadir, censurar, reprimir, o poder produz, incita, intensifica, discursifica, constrói. A análise do olhar que, no perscrutar do seu objecto o dá a ver ao próprio saber, e assim o cria como objecto visível e dizível, como objectividade cognoscível, ao mesmo tempo que constrói o próprio olhar que vê, a subjectividade que conhece – esta análise, dizíamos – será prolongada em Vigiar e punir quando o objecto de estudo não é já o corpo trespassado pelo olhar anátomo-clínico, mas o comportamento do indivíduo no seu todo, assim produzido como objecto e como sujeito. Ou seja, a análise de O nascimento da clínica é retomada em Vigiar e punir a um outro nível de qualificação metodológica, quando a arqueologia e a genealogia que a revê estão já amadurecidas e quando o que (pre)ocupa Foucault é já claramente a formulação de uma teoria coerente do poder, o que faz concebendo a noção de dispositivo a partir do panoptismo. Tendo em atenção a situação respectiva de ambas as obras no estado de evolução da work in progress que foi o trabalho de Foucault, assinalaremos apenas que o aparato crítico, que a ele se refere ou nele se inspira, e que actualmente se debruça sobre a cultura visual da medicina, não deixa de fazer a leitura de O nascimento da clínica à luz da posterior obra foucauldiana. Tomaremos isto como adquirido nosso, sem no entanto nos demorarmos agora no esmiuçamento desta evolução do pensamento do filósofo desde que reflectiu sobre o regard médical. Com efeito, a tese foucauldiana de O nascimento da clínica fez escola, multiplicando-se pelos autores que desde então se têm debruçado sobre as relações entre arte e ciência, no campo emergente dos estudos sobre a cultura visual, e nomeadamente na cultura visual da medicina. Nesta medida, a tese de Foucault é essencial para se compreender a grande viragem epistémica na história da cultura visual da medicina, aquela que transpõe a era da imagem anatómica impressa para a imagem fotográfica e radiográfica, primeiro, e a imagem digital, depois.
6. Um Programa de Pesquisa
Sob o ponto de vista da sua fundamentação teórica, a investigação da cultura visual da medicina em Portugal é conduzida pelas teses de Erwin Panofsky, Marshall McLuhan, Paul Virilio e Michel Foucault, segundo as quais, e respectivamente:
Desde o Renascimento a teoria das proporções humanas foi abandonada pelos artistas e teóricos da arte em favor dos cientistas;
Para todos os efeitos práticos e operativos, o meio é a mensagem, o que quer dizer que o conteúdo de qualquer medium é sempre outro medium e que as consequências pessoais e sociais de qualquer medium resultam da nova escala que é introduzida por qualquer nova tecnologia; ou seja, o meio é a mensagem porque é o medium que molda e controla a escala e a forma da associação e da acção humana, sendo assim impossível construir uma teoria da mudança cultural sem conhecer as mudanças de relações sensoriais que resultam das diversas exteriorizações dos nossos sentidos e que, por sua vez, faz com que a cultura sofra uma transposição cuja rapidez é proporcional à velocidade de assimilação da nova tecnologia;
É possível definir três grandes épocas de vigência de diferentes iconologias ou lógicas da imagem e que são outras tantas épocas de propagação dela: uma época da lógica formal da imagem é a da pintura, da gravura, da arquitectura, que se encerra com o século xviii; uma época da lógica dialéctica que é a da fotografia, da cinematografia, ou, se se preferir, a do fotograma, desde o século xix; e uma época da lógica paradoxal da imagem que principia com a invenção da videografia, da holografia e da infografia;
A medicina clínica moderna advém de uma alteração da relação entre o visível e o enunciável que criou a possibilidade de uma anátomo-clínica com toda a sua imagiologia.
7. Um Programa de Pesquisa – O Campo Empírico
A esta luz, é possível destrinçar três grandes épocas na cultura visual da medicina, que se definem e distinguem entre si (embora possam sobrepor-se parcialmente no plano temporal) em função dos tipos de suporte mediático das imagens (McLuhan) e das correspondentes lógicas de funcionamento da imagem (Virilio): 1) a da representação anatómica renascentista inaugurada pela obra de Vesálio e que se prolonga até aos modernos tratados de anatomia e de antropometria, regida por uma iconologia formal, e que, no caso português, se prolonga desde a recepção dos tratados anatómicos a partir de Vesálio até às imagens e objectos anatómicos para fins pedagógicos e de formação contínua, incluindo preparações cadavéricas de todos os tipos, os manequins de cera e de madeira, os livros de autópsias com propósitos médico-legais; 2) a da radiografia, da fotografia e da cinematografia, a que corresponde uma iconologia dialéctica e inaugurada pela técnica radiológica de Roentgen e a que corresponde, no nosso País, o «bertillonage» antropométrico para fins médico-legais, a angiografia de Egas Moniz e da subsequente escola angiográfica, a fotografia da medicina colonial para fins eugénicos, ergográficos e raciais, a fotografia de delinquentes, de desviantes sociais, de doentes mentais e físicos, a fotografia de lesões dermatológicas, de vítimas de violação, de agressão e de homicídio, a fotografia documental em contexto de epidemia; e 3) a das tecnologias informáticas contemporâneas de imagiologia médica, regida por uma iconologia paradoxal.
Como ressalva fundadora, entre várias outras porventura menos relevantes que se poderiam fazer, impõe-se adiantar que uma história da Cultura Visual da Medicina não é, não pode ser e não pode alimentar a pretensão de ser, e, portanto, não pode ser esperada nem recebida como, o equivalente de uma história ilustrada da Medicina, ou uma História da Medicina em ou pelas suas imagens, que não pode recobrir na sua totalidade nem traduzir nos seus conteúdos. A história da Cultura Visual da Medicina é uma história da produção, uso, sentido e valor das imagens na Ciência e na Arte Médica.
Sendo o nosso País, do ponto de vista histórico, predominantemente uma região semi-periférica de receção da produção tecnocientífica das regiões centrais, a ilustração de cada uma daquelas fases da Cultura Visual da Medicina tende a deparar-se com as formas e os exemplos concretos da aplicação da inovação importada, geralmente abundantes, com muito poucas, mas notáveis exceções, de produção científica portuguesa original. Nesta medida, os resultados da pesquisa da Cultura Visual da Medicina em Portugal confirmam amplamente a situação de não-centralidade da produção tecnocientífica e artística nacional estabelecida por autores que nos antecedem. Tal acontece logo com os tratados seminais de anatomia, desde o De Humani Corporis Fabrica de Vesálio, de que se assinala a existência de primeiras edições, mas que quase não têm contrapartida de autoria portuguesa. É inclusive de presumir que as editio princeps de obras anatómicas clássicas, encontráveis em bibliotecas e arquivos nacionais, pouco ou nenhum uso científico ou pedagógico tivessem tido nas escolas médicas, preterido pela sua utilização sumptuária e ostentatória que só relativamente tarde terá sido interrompida, como o comprovam os espólios que conservam exemplares posteriores à reforma pombalina da Universidade de Coimbra.
Tanto não significa, de modo nenhum, que a primeira época da História da Cultura Visual da Medicina, com a correspondente iconologia e com a lógica formal que carateriza o seu funcionamento, não se encontre abundantemente documentada no nosso País, com objetos visuais aqui produzidos, a despeito da ausência praticamente total de contrapartidas nacionais aos objetos seminais desta época e desta iconologia, que são os tratados anatómicos. Com efeito, é no âmbito da Anatomia que a imagem médica se encontra melhor documentada quantitativa e qualitativamente, com um ponto alto nos estudos anatómicos de Henrique de Vilhena, dados à estampa nas primeiras décadas do século XX no Arquivo de Anatomia e Antropologia. Também o cruzamento da anatomia artística com a anatomia médica se encontra bem documentado com coleções conservadas no Museu de Medicina da Universidade de Lisboa e, maximamente, com os desenhos anatómicos da mão de Maria Helena Vieira da Silva. Da mesma ordem são os esquemas anatómicos (corpo inteiro, crânios, membros, tronco, órgãos genitais, etc.) do Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra, produzidos para registo de lesões, no âmbito das perícias médico-legais em casos de agressão, de homicídio, de suicídio e de estupro e violação, neste último caso inspirados pelos amplos estudos ilustrados empreendidos por Asdrúbal de Aguiar e publicados em tratados próprios e que igualmente se refletem na extensa coleção de relatórios ilustrados de autópsias guardados no espólio do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciência Forense de Lisboa. Se a imagem anatómica impressa constituiu originariamente o modelo da iconologia da primeira época da História da Cultura Visual da Medicina, a lógica formal que lhe é própria estende-se, porém, aos objetos visuais não impressos, nomeadamente os modelos escultóricos, as preparações cadavéricas e as ceroplastias que abundam nos museus médicos nacionais. Ocorrem modelos escultóricos de todos os tipos (de membros, de órgãos, de crânios) e alguns materiais (madeira, gesso, sobretudo), que ilustram tanto a anatomia patológica como a anatomia normal e que obedeceram primordialmente a um intuito pedagógico na transmissão dos saberes médicos e que se encontram nos espólios museológicos de todas as escolas médicas nacionais (Lisboa, Porto e Coimbra) e entre os quais avulta o nome de Geraldino Brites. Igualmente bem representadas são as numerosas e diversificadas preparações cadavéricas por diferentes técnicas, tais como a formolização, a diafanização ou a mumificação, bem como as inúmeras peças esqueléticas e algumas muito curiosas secções de pele tatuada, mumificadas ou formolizadas. As colecções talvez mais sofisticadas do ponto de vista técnico são, todavia, as ceroplastias ou modelos anatómicos em cera, tais como as reunidas no Museu de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e no espólio do antigo Hospital do Desterro atualmente alojado na secção museológica do Hospital dos Capuchos, em Lisboa, que documentam, sobretudo, lesões dermatológicas de afecções tais como a sífilis, a escarlatina, a pelagra, a psoríase, as neoplasias, os eczemas, a lepra, o impetigo, o líquen e várias outras infestações, além de órgãos, músculos e membros ou secções do corpo para estudo anatómico, de finais do século XIX, provenientes das oficinas parisienses de T. Vasseur e de J. Baretta.
O facto de a técnica fotográfica ser incomparavelmente mais barata que a panóplia de materiais caros e de técnicos muito especializados necessários à pintura e à escultura anatómica, o que tornava os tratados anatómicos em artigos de luxo só acessíveis a uma elite muito restrita (e o mais das vezes não médica), faz com que o democratizado acesso à fotografia se traduza no nosso País por uma superabundante documentação da segunda época da História da Cultura Visual da Medicina, cuja lógica dialéctica é compartilhada por aquela com a radiologia e que publicações como a Folia Anatomica Universitatis Conimbrigensis, a Amatus Lusitanus e o Arquivo de Anatomia e Antropologia maximamente ostentam, de entre a quase totalidade da imprensa médica portuguesa de finais do século XIX e décadas iniciais do século XX. Tanto a fotografia como os raios X oferecem aos contemporâneos da sua descoberta a promessa de acesso a dimensões do real de outro modo invisíveis: a fotografia concitou a expectativa de dar conta do real tal como ele é, sem a retórica da descrição discursiva e sem a interferência deformadora da mão humana na pintura, visto ser uma técnica que versosimilmente, recorria tão-só às virtualidades da própria luz, que não só reproduziria o real sem qualquer alteração, como permitiria visualizar realidades de outro modo imperceptíveis ao olho humano, sujeito a limitações corpóreas que a câmara ultrapassaria – aquilo a que posteriormente se chamaria o «inconsciente óptico». A tecnologia dos raios X, por sua vez, prometia o cumprimento derradeiro do sonho da transparência total do corpo humano, e designadamente do corpo humano vivo, secularmente perseguida pela ciência médica. Assim se explicam alguns dos seus êxitos, mas também uma boa parte da mitologia fundadora de muitas das derivas voyeuristas dos saberes médicos e que se mormente refletem na pura e simples existência de alguns tipos de imagens, sobretudo fotográficas, cuja justificação e necessidade foram outrora óbvias e que hoje, depois de semelhante recurso à fotografia ter sido abandonado pela prática médico-científica, nos concitam desconfiança e inclusive suspeita quanto aos interesses que as conduziam. Por outro lado, a espectacularidade de algumas imagens também se deve ao facto de as patologias retratadas se encontrarem frequentemente nos estádios finais da respectiva história natural, o que se explica e foi possível pela escassez de meios terapêuticos disponíveis para as suster ou tratar eficazmente na época, ou, então, pelo recurso tardio ao médico por parte de uma população não coberta por qualquer sistema de prestação de cuidados de saúde, bem como por ser portadora de uma cultura refractária ao recurso aos poucos cuidados realmente disponíveis. Avultam a fotografia das lesões causadas pela lepra, recolhidas sobretudo, ainda que não exclusivamente, entre os pacientes internados no Hospital Colónia Rovisco Pais, a fotografia das lesões oncológicas, nomeadamente o notável espólio do Instituto Português de Oncologia, mas que se encontram disseminadas por múltiplas publicações periódicas médicas. Por sua vez, a fotografia de lesões dermatológicas, tanto as causadas por patologias especificamente dermatológicas como as patologias que se manifestam de forma espectacular na pele e nas mucosas constituiu um autêntico manancial de registos imagéticos, notável pela sua quantidade, tanto como pela sua espectacularidade, sendo uuma área de eleição da produção imagética. Áreas onde prevalecem as imagens relativas à antropometria, classificatórias, ergonómicas, de documentação das aptidões e das performances, bem como a medicina de recuperação e a medicina reconstrutiva são a Medicina Desportiva e a Medicina Militar, com destaque nesta última para as imagens de soldados gaseados na Primeira Guerra Mundial. De outra ordem são a fotografia de curiosidades, voyeurista e por vezes mesmo mórbida e de longínqua herança nas colecções dos antigos «cabinets de curiosités», que privilegiam, por exemplo, o (pseudo)hermafroditismo – com uma menção especial para a fotografia pioneiríssima de May Figueira, dos órgãos genitais de um hermafrodita recolhidos em autópsia – os estados intersexuais e os vícios de conformação urogenital registados por Pires de Lima e Vítor Fontes, bem como a fotografia de fenómenos relativos à sexualidade que registam tanto a precocidade do desenvolvimento de características sexuais como o seu retardamento, ou outras e diversas anomalias (hipertrofia do peito, ginecomastia…), mas também a fotografia da monstruosidade em nados-mortos, ou de outras deformidades espectaculares em adultos, sendo que a fotografia de malformações, tanto reversíveis como permanentes, adquiridas ou congénitas, visava igualmente ilustrar e fazer a apologia da eficácia e do êxito de terapêuticas reparadoras e reconstrutivas, mediante a ilustração fotográfica do «antes» e do «depois» das intervenções, desde os benefícios dos banhos de sol – onde é de notar o registo algo perturbante efectuado por Bissaia Barreto com modelos infantis – até aos efeitos prodigiosos do tratamento sintomático no imediato pós-operatório da psicocirurgia. Em plano semelhante se encontram os registos – em tom documentarista – dos benefícios de terapêuticas tais como a ergoterapia, a fisioterapia, a balneoterapia, etc., que frequentemente têm o propósito de dar conta da inovação e da modernização da prestação de cuidados de saúde. De idêntica maneira, são de assinalar as imagens relativas à teoria e técnica da imagem médica, que dão conta do state of the art de dispositivos e procedimentos técnicos, que fornecem instruções de leitura e interpretação das imagens, que desenvolvem a pedagogia do seu uso e do seu valor diagnóstico, o que demonstra o carácter sofisticadamente auto-reflexivo que adquiriu entre nós a produção de imagens médicas. No campo da Saúde Pública, apesar de não serem inexistentes, não são particularmente abundantes no nosso País as imagens da época de ouro do higienismo que ilustrem políticas eugenistas que realmente nunca tiveram dimensão significativa comparável ao Norte da Europa e da América, mas conservam-se espólios muito interessantes relativos à antropometria racial na Medicina Colonial, bem como os relativos à Medicina Tropical que por vezes se confunde com aquela, num pretexto algo dúbio. Por seu lado, na área específica da Endocrinologia que é a medicina da diabetes, encontramos aqueles que talvez sejam os exemplos pioneiros e de maior relevo no que respeita à produção de imagens com intuito eminentemente pedagógico dirigido a populações-alvo com afecções particulares ou com comportamentos e estilos de vida de risco. A Medicina Legal constitui outra das áreas em que as imagens, e designadamente as imagens fotográficas, sempre desempenharam um papel de extrema importância, com particular ênfase nas imagens de lesões próprias de vários tipos de crime (agressão, homicídio, estupro e violação), suicídio (diferentes meios empregues, enforcamento, afogamento, tiro por arma de fogo, envenenamento, etc.) e auto-mutilação, bem como as causadas por acidentes (queimaduras por diversos agentes, quedas, afogamentos, etc.). Notáveis a vários títulos são os registos da tatuagem (além das fotografias, existem desenhos em tratados, da autoria de Henrique de Vilhena e Rodolfo Xavier da Silva, que ilustram exemplos e técnicas, além de espécimes preservados por mumificação ou formolizados). A fotografia identificadora forense nacional reproduz o state of the art do que se fazia nos países de referência, havendo a destacar a fotografia de tipos criminosos, as muito curiosas imagens de homossexuais e travestis (em obras de Asdrúbal de Aguiar e de Ary dos Santos), as fotografias máscara cadavérica, com um muito notável álbum de Azevedo Neves), bem como o registo fotográfico, paralelo à ilustração manual, em relatórios de autópsias conservados nos livros de autópsias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses de Lisboa, e, absolutamente de assinalar, a extraordinária sequência de imagens que documentam a técnica da extracção do cérebro na autópsia por João de Azevedo Neves (fotografia, impressão do original fotográfico e finalmente desenho a partir deste com o propósito de lhe restituir a nitidez original). A receção portuguesa à teoria e prática do «bertillonage», com a fotografia identificadora, as perícias médico-legais e a dactiloscopia, expressos no amplo uso de aparelhagem técnica e na existência de manuais que demonstram e comentam a respectiva técnica, prova o interesse e o valor que ele assumiu nos meios da ciência forense nacional. Idêntica receção mereceu a microfotografia, em regra de preparações microscópicas (tecidos, fluidos, agentes patogénicos, etc.) desde cedo usada entre nós. De realçar a fotografia que maximamente exemplifica o «inconsciente óptico», como é o caso das imagens do opistótono e da histeria (esta fotografada por Elísio de Moura). De algum modo, porém, é esse mesmo «inconsciente óptico» que sobressai na fotografia psiquiátrica, que, para além de retratar as situações menos óbvias desse ponto de vista, como são os casos da microcefalia ou da anorexia nervosa, abundam em imagens que obedecem ao intuito de fazer transparecer, ou de dar um rosto identificável como tal às diversas formas de loucura e de afecção psíquica, que encontramos nos riquíssimos mas vulneráveis espólios de instituições psiquiátricas portuguesas, à cabeça das quais o Hospital Miguel Bombarda, desde a sua fundação como manicómio de Rilhafoles, onde ainda se conta uma profusão de imagens de meios terapêuticos e de contenção, bem como a existência dos dispositivos panópticos – naquele hospital e igualmente no Hospital Conde de Ferreira, no Porto – que constituem instrumentos por excelência de visualização, em si resumindo a pulsão escópica que preside a boa parte da produção de imagens médicas, a qual se prolonga desde a preocupação genuinamente científica, como instrumento e resultado do saber, até à representação não-científica da doença e do doente que não deixa de inspirar e transfundir aquele com o seu ocularcentrismo voyeurista de longo e sinuoso percurso na cultura ocidental. A segunda época da História da Cultura Visual da Medicina, que na radiologia era já ilustrada pelo menos desde a colecção pioneira de Augusto Bobone, conservada na Academia das Ciências de Lisboa, culmina finalmente em Portugal com um dos momentos altos da imagiologia médica, de repercussão internacional, que foi a técnica específica da angiografia cerebral concebida por Egas Moniz e desenvolvida pela Escola Portuguesa de Angiografia, o qual consubstancia um dos momentos em que, por intermédio da produção da imagem médica, o real parecia oferecer-se enfim ao olhar da Ciência sem qualquer véu de erro, engano ou deformação e na sua mais nua e íntima verdade.
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